sábado, 11 de setembro de 2010

O Grande Massacre de Gatos


“... as melhores vias de acesso, numa tentativa de penetrar numa cultura estranha, 
podem ser aquelas onde ela parece mais opaca”. 
R. Darnton


“Os trabalhadores se revoltam: o grande massacre de gatos na rua Saint-Séverin” é um dos ensaios do livro “O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa” de Robert Darnton, professor de História da Princenton University. O livro é fruto de suas aulas na universidade e sofre influência de Clifford Geertz, antropólogo estadunidense, parceiro acadêmico de Darnton. Assim tenta analizar as maneiras de pensar da França do século XVIII; seu ponto de partida historiográfico é a história das mentalidades ou história cultural.

Em sua estimulante crônica histórica Darnton gira em torna de uma narrativa escrita por Nicolas Contat, então aprendiz de um gráfica. A partir dela, primeiro ele apresenta a vida dura dos aprendizes no contexto da França do fim da década de 1730. Com isso ele descreve a narrativa e propõe significações, o que parece ser feita com referencias que vão desde a sociologia à antropologia, passado pela psicanálise.

Sobre a narrativa de Contat, que nesta apresenta-se como Jerome, o historiador pontua que os patrões, sobretudo a mulher do patrão, tinha devoção por gatos, de forma particular por “la grise”, sua preferida. Gatos se proliferavam como pragas, atrapalhavam o sono dos aprendizes e eram melhor tratados que tais.

Um dos aprendizes, Léveillé, companheiro de Contat, diz Darnton, que possuía “talento extraordinário para imitação” (p. 104), em cima do quarto do patrão põe-se a miar de forma aterradora tirando-lhe o sono; este, por sua vez, decidindo que estava sendo enfeitiçado, manda os aprendizes e empregados livrarem-se dos gatos recomendando não fazer mal a “la grise”. Era a vingança dos aprendizes. Com paus e barras de ferros se colocam em perseguição dos gatos, mas a diversão realmente se dá com a morte à base de pauladas de “la grise”, a favorita da patroa, seguida de “ritual de condenação”. Essa matança foi encenada inúmeras vezes na oficina sob gargalhadas de aprendizes e empregados.

As grandes perguntas do historiador são as seguintes: “Onde está o humor, num grupo de homens adultos balindo como bodes e batendo seus instrumentos de trabalho, enquanto um adolescente encena a matança ritual de um animal indefeso?” (p. 106). “Qual o significado que aquela cultura atribuía aos gatos?” (p. 123) É a partir dessa perguntas provocadas por esta estranheza e com base na narrativa do Contat, que se desenvolve a pesquisa de Darnton.


A primeira explicação que o autor apresenta é como ataque direto ou indireto aos patrões, isso pois, o narrador da história situa-a no contexto patrão-empregados. Darnton lembra que a história tradicional tende a mostrar a fabricação artesanal como um período idílico antes da industrialização, mas a história verdadeira não é essa. Em geral era muito difícil um aprendiz chagar a empregado e um empregado chegar a mestre.

A pesquisa de Darnton o levou aos arquivos da “Société Typographique de Neuchâtel”. O livro de pagamento, por exemplo, demonstra que os empregados, em geral, ficavam muito pouco tempo na gráfica por conta de brigas, bebedeira e outras formas de desentendimentos. parece que havia uma crença comum dos patrões em relação aos artesãos no século XVIII: “eram preguiçosos, inconstantes,  inconstantes, dissolutos e não-confiáveis” (p. 111). Sendo assim, os patrões poderiam livrar-se deles a hora que bem entendessem sobre qualquer ou nenhuma alegação. “Ao apresentar seu relato sobre o massacre dos gatos, Contat deixou claro o contraste entre os universos do trabalhador e do patrão...” (p. 112). Esse contraste, ou seja, a questão social é a primeira explicação para o grande massacre.

Na segunda explicação, o pesquisador vai mais longe, busca a relação que existia entre os gatos e os carnavais da época. Essa festas poderia ser seguidas de tortura de gatos, festas, muitas vezes, protagonizadas por jovens aprendizes. Era o espaço de burlar os interditos. A partir disso o pesquisador vai descrevendo outras festas e rituais em cidades francesas onde figuram a tortura, queima ou morte de gatos. Depois segue demonstrando como os gatos mexem com a imaginação do ser humano, que despertam desde o fascínio à crueldade.

Buscando respostas para isso na literatura, Darnton afirma que no início dos Tempos Modernos os gatos estavam mais associados ao campo simbólico que qualquer outro animal (cf. p. 125), de forma particular a feitiçaria.  Independente disso, os gatos tinham um poder oculto e também estavam ligados a medicina popular. Finalmente, estão ligados ao sexo, mais precisamente fertilidade e sexualidade femininas, mas também, gritaria de gatos poderia significar uma orgia satânica. E essa é a segunda explicação de Darnton, a questão folclórica do massacre dos gatos. E, é a partir essa que o historiador provoca para a terceira. No massacre dos gatos

“... os trabalhadores julgavam o burguês ‘in absentia’, usando um símbolo para deixar transparecer o que queriam dizer, sem serem  suficientemente explícitos para justificarem a retaliação” (p. 130).

Os gatos surrados e ritualmente julgados e mortos eram simbolicamente os patrões condenados sob acusasão de negligência e exploração para com seus empregados. A patroa que vê “la grise”, sente como ela mesma violentada, violada, como um estupro num sabá de orgia e violência (cf. p. 132). Darnton busca significado para aquilo que Contat já significou a partir de sua cultura. “Era um insulto metonímico, feito através de ações não de palavras” (p. 134). O gato era o símbolo do patrão opressor, mas também da patroa, feiticeira libidinosa que tinha sido tomada sexualmente naquele ritual. Outrossim, o historiador justifica antropologicamente, com perspectiva psicanalítica, o massacre da rua  Saint-Séverin.

O fascínio pelos gatos remonta ao tempo do Antigo Egito (cf. p. 120): Bastet, deusa com cabeça de gato, era uma divindade protetora da famíliaç também tinha Sekmet, outra deusa felina que representava ao mesmo tempo justiça e destruição. Parace que a dimensão simbólica dos gatos sempre estive rodeada de contradições desde os tempos mais remotos da humanidade. Todavia o mérito da pesquisa de Darnton é trabalhar o simbólico no campo social, o que nos leva sua pergunta inicial: “Onde está o humor, num grupo de homens adultos balindo como bodes e batendo seus instrumentos de trabalho, enquanto um adolescente encena a matança ritual de um animal indefeso?” (p. 106). Num esboço de resposta, somos remetidos a vida classe trabalhadora do século XVIII e sua forma de resistência, como fala o próprio autor, que remetia ‘mais a ações que a palavras’. Ou seja, onde há opressão há algum tipo de resistência e o que nos ajudaram a comprender Contat e seus companheiros da gráfica é que o símbolo, metáfora e metonímia, tem um grande poder no campo social de desconstruir ‘estruturas velha’ e construir uma nova realidade.


DARNTON, Robert. “Os trabalhadores se revoltam: o grande massacre de gatos na rua Saint-Séverin”. In: DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p. 103-139. 

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